sábado, 10 de abril de 2010

A Herança de um Shaman VIII

– E onde fica Tardos, então?
Novamente Genim me olhou com uma expressão de surpresa. Parecia que eu era alguma espécie de criatura que ele não conseguia entender. Ainda assim, ele limitou-se a responder secamente:
– Tardos é uma cidade ao noroeste daqui. Lá encontrará Nick, uma experiente Shaman. Ela te ensinará como usar seus poderes. Tens mais alguma pergunta?
A noite estava avançando rapidamente, e o vinho que bebia começava a fazer seu efeito. Os olhos começavam a embaçar, e as coisas não faziam mais tanto sentido.
Uma forte corrente de vento tomou a campina, enquanto Genim abria um franco sorriso. Eu senti uma nova presença surgindo atrás da pequena morte. As sombras foram aos poucos se adensando, até tomarem a forma de uma pequena criança, em quase tudo idêntica a Genim. Somente seus cabelos e olhos em tons cálidos de dourado o distinguiam.
– Oirim.
O Sono. Ele não falou, apenas meneou positivamente a cabeça. Sua presença era mais calorosa que a de seu igual, fazendo com que meus músculos aos poucos relaxassem.
– Está na hora, meu irmão. Ele precisa descansar, até que o sol nasça novamente, e ele precise caminhar.
– Eu sei. Acontece que já fiz isso tantas vezes que me sinto um pouco atraído por este serviço. Eu sei que é mórbido, mas creio que ninguém melhor que a morte para esta função. – Ele sorriu maliciosamente.
– Descanse, jovem. A manhã virá em breve, e com ela deverás partir para a cidade dos muros. Uma raposa lhe avisará sobre teu caminho.
Não me lembro de nada mais que me fora dito. Uma sensação de conforto e bem estar tomou meu corpo, e antes que qualquer palavra pudesse ser proferida, caí no sono.

Oirim olhou secamente para o irmão.
– Achas que ele tem futuro?
– Talvez. Eu vejo um futuro brilhante, mas cheio de agruras. Ele será grande, maior que seu pai, porém enfrentará perigos muito maiores.
– Será ele que trará a guerra?
Aeon caminhava resoluto, em toda a sua glória.
– Não posso afirmar nada. No entanto, tenho certeza que ele terá seu papel nos próximos acontecimentos.
– Somente o tempo poderá dizer. – Oirim falava sonhador, olhando para o céu. – As estrelas estão diferentes hoje. Nebulosas e estranhamente silentes. Creio que chegamos a um novo começo.
– É também um novo final. – falou Genim, contido. – O tempo é o senhor das coisas, dê a ele a chance de mostrar seus desígnios. – Os três sumiram no ar, como uma nuvem afastada pelo vento.
Na manhã seguinte, Andrey colocou seus pertences sobre o ombro, e seguiu uma pequena raposa, que o levava para a ravina que marcava os confins de sua cidade. Ele nunca mais voltaria a sua terra natal.
Segundo muitos historiadores de Eridor, este é o primeiro evento a desempenhar papel relevante no ocaso da Terceira Era.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

A Herança de um Shaman VII

– Essa história é longa. O que sabes sobre os quatro generais?
Pensei e reuni as poucas informações que tinha. Nunca tinha estudado história, e tudo aquilo que eu sabia era aquilo que meu pai havia contado nos anos passados.
– Tudo que eu sei é que eles eram os quatro Espíritos encarregados pelo Poder das Trevas de cuidar das facções de seu exército. Eram o Terror, a Peste, a Discórdia e a Destruição. Em algum ponto da Segunda Era, eles foram aprisionados. Isso era o que eu sabia até agora.
– Por incrível que pareça isso é bastante coisa. Bem, vamos à parte que interessa. No final da Segunda Era, um poderoso necromante apareceu na cidade de Liath. Consigo, ele trazia um segredo que mudou as chances a nosso favor, na batalha contra o Elemental das Trevas. As almas que estão dentro dele foram as primeiras a criar um cristal de almas, e foi com essa arma que quatro poderosos magos venceram os Espíritos. Eram quatro humanos, que encerraram os generais dentro de si.
– Estás me dizendo que humanos chegaram tão longe?
– Exatamente. Os Espíritos que lutavam ao nosso lado, por óbvio, os ajudaram nessa empreitada. Eu mesmo ajudei o teu antepassado no momento do embate.
Eu pensei por um minuto. Então eles vencerão os quatro generais e os submeteram aos seus poderes. Certo, se os Espíritos haviam ajudado isto me parecia mais plausível. Mas algumas coisas ainda pareciam me incomodar no meu íntimo.
– Disseste que, além de nós quatro, havia outros Shamans no mundo, que Espíritos eles prendem?
Genim olhou-me com olhar de quem não acreditava no que ouvia. Por alguns momentos ficou parado me olhando, medindo as palavras.
– Eles não prendem nenhum espírito. São comunhões de comum acordo entre Espíritos e humanos ou elfos. Isso acontece, por exemplo, quando o Espírito é muito fraco, ou sua origem de poder está sendo destruída, e ele está próximo à morte. Esses Shamans, em regra, são muito mais fracos do que vocês, os quatro grandes Shamans, mas é com um deles que treinarás.
– Certo. O que acontece quando um Shaman é morto?
– Simplificando, o Espírito que ele prendia é liberto.
– Isso significa que…
– Se morreres antes de transferir este espírito ao teu sucessor, tudo estará acabado. – Ele falava com uma certeza inconveniente. – Por esta razão, nem penses em morrer antes que eu volte a vê-lo.
Calei-me. Era bastante saber que eu deveria ir atrás de treinamento, e sobreviver ainda assim.
– E para que eu preciso treinar?
– Para que este Espírito dentro de ti não tome a tua consciência, para que saibas controlá-lo. Isto seria o principal. Mas por algum azar que as estrelas guardam para os Shamans, vocês sempre acabam tomando um papel central em seu tempo. Mas não te preocupa, pois os pequenos Espíritos de raposa serão fieis emissários nesta tua jornada.
Uma pequena raposa apareceu ao nosso lado. Já havia visto uma, só não me lembrava aonde. Passei a mão na cabeça daquele pequeno ser, enquanto pensava na próxima pergunta.

sábado, 27 de março de 2010

A Herança de um Shaman VI

Se disser que me lembro de tudo daquela noite será uma mentira, no entanto, o principal ainda me dói nos ouvidos. Lembro-me que o vinho servido por aquela criança tinha um gosto maravilhoso, mas não embebedava. Assim, eu mantive a minha lucidez, e me recordo de muito daquilo que foi contado.
Genim, durante toda a conversa me olhou com o mesmo ar fraternal, enquanto me explicava cada passagem com clareza. A minha primeira pergunta talvez fosse aquela que ele menos esperava.
– O que te tornaste? – Ele sorria enviesado. – Não houve qualquer mudança em tua essência. Carregas um Espírito incrivelmente poderoso, bem como mais quatro almas atreladas à tua, mas continuas tão humano quanto sempre fostes.
– Como assim, quatro almas?
– Essa é a parte delicada. Aquele cristal que eu lhe dei é feito a partir de matéria humana, mais especificamente um mago, um espadachim, um arqueiro e um boticário. Esses serão conhecimentos que irão lhe ser úteis em tuas jornadas.
– Conhecimentos úteis, mas se eles foram usados…
– Já tinhas usado magia? – Ele já sabia a resposta. – Ainda assim, o fez naturalmente em tua casa. Eu sei que é difícil de acreditar, mas essas pessoas vivem em ti, dividindo a tua humanidade. Essa magia é complexa, mas aprenderás a usar suas novas técnicas com o tempo.
– Eu poderei usar magia, então?
– Sim. Mas isso dependerá mais de ti do que deles. O feitiço que usei não te fundiu totalmente com essas almas. Diferente de outros que portam este cristal, não serás imortal. A força desta pedra servirá, antes de tudo, para impedir que o selo se rompa. Mas também será capaz de recuperar tua saúde muito rápido, e manter tua vida a despeito da gravidade da ferida.
– E como eu poderei ter aqueles conhecimentos?
– Isso também dependerá de ti. Se te concentrares, sentirá dentro de ti as almas desses doadores. Isso é o que te faz tão diferente de outros humanos que tenham essa pedra. Tua alma não se fundiu às deles. Mas elas estão conectadas, e, por isso, poderás escutá-los, acessar seus conhecimentos, e técnicas. Isso dependerá de treino.
– E este espírito que vive em mim?
– Este não te será de ajuda nenhuma, a menos que aprendas a controlá-lo, o que não farás sozinho. Daqui, irás em direção a Tardos, onde aprenderás a usar este espírito, com outro Shaman. Mas depois eu lhe darei estas informações.
A fogueira continuava a crepitar alegremente. Paramos olhando para o fogo atentamente. As perguntas continuavam a inundar minha mente, ainda que eu não conseguisse decidir qual fazer.
– E os outros generais?
– Assim como Kyu todos foram aprisionados em Shamans.
– Eu vou apreender com um desses?
– Desculpe lhe, frustrar, mas não. É melhor que treines com alguém mais experiente, com mais tempo nesse ofício.
– Existem outros?
– Sim, claro, muitos outros. Mas somente em quatro casos isso foi feito sem a permissão do espírito. – Ele me olhou significativamente. – Não vais fazer a pergunta mais importante?
Respirei fundo, e falei a pergunta que me consumia.
– Como meu esta herança entrou em minha família?

terça-feira, 23 de março de 2010

Pedido de desculpas

Peço desculpas pela demora em atualizar o blog, mas vou terminar essa história, antes de um novo lapso.
Abraço a todos.

Herança de um Shaman V

Eu não consegui mover um único músculo. Aquela cena era descabida, totalmente improvável. Quando penso naquele dia, ainda me lembro do absurdo que era uma criança balançando aquela imensa espada contra um homem. Outro absurdo era que eu, tão forte aquela época, fui totalmente incapaz de defender meu pai. Até hoje me perguntado se foi por covardia ou amor que não entrei na frente daquela lâmina.
Uma pequena mariposa de cor arroxeada começou a fazer rodopios em volta do Espírito. Percebi que era a única diferente das outras, só podia ser meu pai, que portava a benção do Senhor do Infra-Mundo. Não consegui chorar, mesmo diante do evidente fato de que ele tinha morrido. Ao contrário de mim, Genim parecia não ter problemas em demonstrar seus sentimentos, ao permitir que uma pequena lágrima de sangue descesse por seu rosto.
– Pegue essa espada. – Ele me entregou a arma que estava ao lado de meu pai. – Quando estiveres pronto para começar tua jornada, e abandonar esta casa, estarei esperando por ti na floresta, ao sul da vila.
– E minha mãe e minha irmã, como elas ficam?
– A vila as irá proteger e cuidar delas, já que elas não têm quem as olhe. No que depender dos espíritos, elas também não passarão necessidade, já que as abandonas pelo nosso bem, e nosso desígnio. Por favor, leve o tempo que quiseres em tua despedida, mas vá a floresta antes do nascer do sol. Não me furtarei a uma única pergunta, então.
Ele fez um gesto com a mão, como quem dá passagem a alguém. As borboletas seguiram em direção a janela. Reparei que a borboleta violeta ia no meio das demais, que simplesmente lhe faziam um cortejo. Esperei elas desaparecerem para olhar de novo para o espírito.
– Vá, Senhor. Em breve estarei reunido contigo. Obrigado.
Genim sorriu, e desapareceu, como uma sombra que se desfaz. As cortinas encerram o movimento que tinha começado há tanto tempo. Era hora de agir. Sem pensar, dirigi-me a sala e olhei para a minha mãe.
– Teu marido, meu pai, habita agora as mansões do infra-mundo. Eu, contudo, não poderei te consolar, minha mãe. Devo seguir com a missão de meu pai, por mais terrível que seja minha jornada. Adeus.
Sem dizer mais palavra, e sem esperar resposta, corri para a porta, ganhando a noite. Aquela foi a última vez que as vi com vida. Ainda assim, agradeço a Genim, que cumpriu suas promessas, pois a vida delas, sem minha presença, foi a melhor que poderia ser. Tinha certeza de que as veria na mansão dos mortos, quando nossa hora de partir chegasse.
Corri o mais rápido que pude com a espada de meu pai. A minha espada. Terminei de correr a pequena vila de casas de pau a pique em pouquíssimo tempo, e a vi ficar cada vez mais para trás. Um sentimento estranho de pesar e liberdade se misturavam em minha alma.
Fiz uma pequena oração silenciosa. Precisaria tirar forças de algum lugar. Engraçado como podemos nos enganar. Naquela época acreditava que estaria só dali para frente.
Eu não demorei a chegar a floresta designada para encontrar o Espírito. Também não tomou muito tempo para encontrá-lo. Ele parecia ter esquecido completamente a discrição, já que tinha feito uma grande fogueira, que ardia vigorosamente. Usava um pequeno tronco como banco.
Aproximei-me com cautela, mas ele percebeu rapidamente minha presença, e gritou para que eu me juntasse a ele. Ele ainda parecia incapaz de conter seus sentimentos. No final das contas, pensei, ele não passava de uma criança, como outra qualquer.
– Tome. – Ele me deu uma pequena taça de estanho. – Brindemos ao teu pai, o maior Shaman de todos os tempos.
Pela primeira vez eu consegui chorar minha perda.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Um pequeno esclarecimento

Como é fácil notar, os personagens do meu mundo falam em Deus. Isso não é mera coincidência. O mundo de Eridor, como o imaginei, foi criado por Deus (optei pelo nome porque sou cristão, mas não excluo qualquer outra religião, denominação, ou forma que possa ser atribuída a esta entidade superior), e ele mesmo criou o Espírito do Mundo, Eridor, como o fluxo de vida, do qual todos os demais Espíritos nasceram. Foi ele também que criou os humanos e elfos, e demais criaturas originais (outras tantas foram modificadas pelos poderes das trevas, mas sempre partindo de uma das já criadas).
Os Espíritos, como descritos, são meras manifestações do fluxo de vida, em ligação com as forças da natureza. Não são, portanto, qualquer tipo de divindade. Por outro lado, eles são muito mais poderosos que qualquer elfo ou humano.
Também quero deixar claro que suas inspirações vêm das mais variadas religiões. Um belo exemplo é Kyu, que tira a inspiração da cultura japonesa, a Kyuubi no Kitsune (raposa de nove caudas). Outro exemplo é Genim, que tirei da cultura grega, representada por Thanatos.
Com o tempo, e se maiores explicações forem necessárias, farei as devidas intervenções.

A Herança de um Shaman IV

Quando eu acordei novamente, estava deitado no chão. Estranhamente eu me sentia muito bem. Meu corpo não tinha dores, e meu peito parecia em perfeito estado. Fora o círculo mágico que Genim fizera enquanto eu estava desacordado, nada parecia mudado. Ainda assim, eu me sentia mudado.
– Acordou? Podemos continuar? – A Morte demonstrava um pouco de pressa em sua voz. – Ouça-me bem, pois o que vou falar-te é algo que não questionarás, ao menos por agora, entendes? – fiz que sim com a cabeça, mais por medo daqueles olhos do que por confiança. – Por muitos anos, o teu pai foi um Shaman, um guardião de um espírito. Dentro dele foi aprisionado o Espírito Superior conhecido como Kyu, a Destruição. Durante gerações, tua família tem guardado este prisioneiro, sempre abençoados por Noa, Poder do Infra-Mundo. Teu pai padece, agora, porque o Cristal de Almas dado a ele começou a perder sua força. Seu corpo foi afetado por este fardo, e se ele não for substituído, esta besta será liberta, e a destruição começará novamente.
Engoli em seco, aquela história era um tanto quanto difícil de aceitar. Meu pai era um Shaman? Dentro dele estava aprisionado o Espírito da Destruição, um dos mais temidos generais das Trevas? Eu deveria carregá-lo a partir de agora? Essas perguntas começaram a girar rápido na minha cabeça, mas assim que eu tomei ar para falar Genim me cortou novamente. Aquilo já estava começando a me irritar.
– Já disse que não temos tempo agora, meu encanto só durará por mais alguns instantes, e o tempo voltará a correr como antes. Eu explicarei tudo, mais tarde, prometo. Agora, limite-se a concentrar-se no círculo desenhado em seu peito. Busque dentro de ti o conhecimento para usá-lo, e libere a tua força vital nele.
Eu entendi um pouco daquelas palavras, mas não sabia o que ele queria com aquilo. Ainda assim, segui a ordem. Fechei meus olhos, sem sentir absolutamente nada. Só então me concentrei fundo em uma fraca voz que me dizia para colocar a mão no círculo. Por instinto obedeci. Ela disse para por a minha força de vontade naquilo, como se eu confiasse a minha vida ao círculo. Imediatamente me senti fraco, como se tivesse corrido alguns quilômetros, e uma estranha luz começou a brilhar em minha pele.
– Esplêndido – disse a Morte. De fato, ainda hoje não consigo palavra para descrever aquilo. O círculo desenhado no peito de meu pai começou a brilhar com o mesmo tom de azul que luzia no desenho feito no meu. O espetáculo de luz começou a ganhar mais cores quando um globo dourado começou a emergir de meu pai, sobre seus protestos violentos de dor. O vulto de uma pequena raposa, com nove caudas era perfeitamente visível dentro da redoma de luz, agora parada na metade do caminho entre nós. Suas formas pareciam moldadas em alguma forma de fogo vermelho e vicioso. As pequenas caudas agitavam-se convulsivamente, atacando sem piedade as paredes da esfera. Sem cessar um instante, aquela coisa continuou seu movimento, até tocar o círculo desenhando em minha pele.
Pela segunda vez naquela noite eu senti uma dor excruciante, e agradeci pelo tempo estar congelado, pois meu grito cortou o silêncio da madrugada. Desta vez, contudo, eu não desmaiei. E vi quando o ritual acabou.
– Alex, seu tempo neste mundo está acabado, meu velho amigo. Agora, unir-te-ás aos teus antecessores para assistir a passagem inexorável dos tempos, na casa de meu Senhor. Em breve, estarei lá contigo, para brindar os bons momentos. Desejas falar algo ao teu sucessor? – A expressão e voz de Genim eram afetuosas. Ele realmente sentia estar fazendo aquilo.
– Filho, esta herança maldita que eu te deixo, é a triste herança de um Shaman. Mas também há felicidades neste caminho, e espero que saibas aproveitá-las. Esta espada agora é tua, tome-a como minha lembrança, e lembrança de tua genealogia. Que Deus lhe abençoe, e os espíritos lhe sejam favoráveis. Adeus.
Com estas palavras, Genim, que tinha sua espada sobre a cabeça, trouxe a lâmina para o chão, sem hesitar por um único instante.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A Herança de um Shaman III

Ele caminhou lentamente para dentro do quarto. Sua presença era fria e maciça. Ao olhar em seus olhos eu vi a minha imagem refletida, um adolescente musculoso pela lida no campo, com a tez amorenada, cabelos negros e olhos castanhos. Um rosto sofrido pelo intenso trabalho de sol a sol.
Num piscar de olhos do espírito a cena mudou para um homem, parecido comigo, só que muito mais velho. Uma flecha proeminente estava cravada em seu peito. Meu eu estava em dúvida sobre o que seria aquela imagem. Somente então me lembrei dos contos sobre Genim: se olhar nos fundos de seus olhos, verá como será a tua morte.
Instintivamente fechei meus olhos e sacudi minha cabeça, tentando banir aquela imagem.
– É bom que esqueças isto. Não importa o que faças de tua vida, humano, realmente espero que não morras, para o nosso bem. – Genim deu um sorriso intimidador.
Meu pai se mexia em sua cama, contrariado pela falta de força. A presença daquele ser fizera com que sua aparência melhorasse bastante.
– Dizem que uma estrela mostra todo o seu brilho antes de desaparecer. Estás melhor que eu esperava, Alex.
A voz da Morte era tenra, como se falasse com um amigo de longa data. Meu pai sorria, como se estivesse feliz em ver aquele ser maldito.
– Suas gentilezas são sempre bem vindas. É bom pensar que no fim terei um pouco de compaixão. Mas por favor, não aguento mais convalescer nesta cama, vamos ao que interessa.
– Seja feita vossa vontade. – Uma espada curta surgiu nas mãos do visitante. Não pensei apenas me levantei e investi contra a criatura.
Foi um movimento completamente em vão. Aquela criatura tão frágil aparecera atrás de mim, prendendo minha mão atrás de suas costas, com a lâmina apontada para meu pescoço.
– Em situações normais, eu odeio essas gracinhas. Mas tu és um caso especial, motivo pelo qual relevarei este gesto. – Com isto ele me soltou de seu aperto. – A morte é inevitável a todos os mortais, mas não é só para levar a alma de teu pai para o descanso eterno que estou aqui.
Com isto ele descobriu o torso nu de meu pai, cortou seu dedo na lâmina da espada, e começou a desenhar um círculo repleto de inscrições rúnicas desconhecidas para mim. O sangue da morte tinha a mesma tonalidade vermelha dos mortais, mas emitia uma luminosidade etérea.
– Apenas armas mágicas, fabricadas por ritos muito especiais, são capazes de nos cortar. Ainda assim…
O dedo terminou de percorrer o intrincado desenho, e ele o tirou da pele do meu pai. A ferida cicatrizou imediatamente. Era um aviso simples, matá-lo era impossível para mim.
– O que é isso?
– Isso é um círculo de magia. Serve para criar um selo espiritual. Em resumo, é uma forma de prender um espírito. Mais tarde eu explicarei tudo, agora, vamos terminar com isso. Tire a camisa, por favor.
Eu obedeci a criatura silente, estava desistindo de tentar resistir. Sem se importar com minha cooperação, Genim tirou uma pedra de dentro de suas vestes. Tinha a aparência de um pequeno cristal, cor de sangue, que irradiava uma fraca luz.
– O que é isso?
– Um cristal de almas, tua nova vida. – Sem mais falar, ele colocou aquela jóia em meu peito. Uma dor inimaginável percorreu meu corpo, e, antes de desmaiar, senti aquela força se encravar em meu coração.
É aqui que minha verdadeira história começa.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A Herança de um Shaman II

Genim caminhava tranquilamente pelas ruas desertas da vila. Sob sua presença, o silêncio se fez absoluto, nem mesmo um grilo ousava cricrilar. Vez ou outra, uma cabeça aparecia furtiva pela janela, mas todos pareciam incapazes de notar a presença da pequena criança e sua imensa arma.
Não demorou muito para que ele achasse uma pequena cabana, próxima ao final da vila, ainda fortemente iluminada pelas velas. Indiferente a existência de humanos dentro do recinto, ele fez sua imensa arma desaparecer, e entrou resoluto.
O interior da pequena residência era tão simples quanto a vila. Um pequeno recinto de chão batido, que se abria para mais três cômodos, que deveriam ser os quartos. Uma senhora estava sentada em um pequeno banco de madeira, e chorava copiosamente, amparada por uma mulher mais jovem. Ainda assim, não notavam a presença do recém chegado.
Por um segundo, a morte pensou no sofrimento humano, e em sua condição miserável. Porém, mais uma pequena borboleta apareceu ao seu lado, acompanhando, em seguida, as outras, em suas revoluções no entorno do ser.
Com um suspiro afastou o pensamento de sua mente, e continuou caminhando em direção a um dos cômodos. Tinha uma missão a cumprir naquele local. Sua mão muito branca tocou a porta, abrindo espaço para que pudesse entrar no recinto…

O dia fora exaustivo. Eu tinha de trabalhar nos campos desde mais cedo, para fazer o meu serviço e o de meu pai, que caíra enfermo no começo daquela semana. Aquilo era algo realmente estranho. Embora tivesse dezesseis anos, aquela era a primeira vez que via meu pai doente.
E aquela não era uma doença comum. Parecia lhe consumir a vida rapidamente. Seus olhos estavam fundos no rosto, nem sombra daquele homem tão forte que ele fora um dia.
Ainda assim, naquela tarde me fez um pedido estranho, para que fosse ao seu quarto, assim que o sol se deitasse. Estava ali desde então, mas meu pai falou muito pouco, limitando-se a pequenos devaneios, provocados pela febre, e o pedido para que lhe fosse entregue sua espada.
Eu sempre quis entender o apego que ele tinha àquela arma, uma espada muito rebuscada para aldeões como nós. Ele me fez treinar a exaustão com aquilo, até que eu pudesse manejá-la com perfeição. Segundo ele isso ainda viria a ser útil para mim.
Sempre ri destes sonhos malucos dele. Contudo, hoje eu estava mais preocupado com seu estado. Ele havia piorado bastante e sua pele havia adquirido um tom esverdeado.
De súbito, uma corrente de ar frio entrou no quarto, acompanhada um sinistro sinal de mau agouro. Foi então que percebi que as cortinas pararam seu movimento, como se tivessem sido congeladas no momento em que se balançavam ao sabor do vento. A temperatura começou a despencar vertiginosamente.
Meu pai soltou um som rouco da garganta, era um som um tanto gutural e fraco, mas inconfundivel de uma risada.
– Chegou a hora, Andrey.
Sem aviso prévio a porta se escancarou, e uma pequena criança, de cabelos prateados, olhos sem pupilas, no mesmo tom, entrou. Seu manto negro e etéreo parecia desfazer-se, ao contato com o menor obstáculo, para voltar a sua forma normal no segundo seguinte. Mariposas negras voavam serenas à sua volta.
Eu sabia quem era, ainda que não quisesse admitir aquela presença naquele local. Era a encarnação da Morte, Genim, que vinha para levar meu pai.

domingo, 24 de janeiro de 2010

A Herança de um Shaman I

Uma criança vestida em negro saltou de uma pedra para a outra, num nível pouco abaixo. Seus pés não produziram som algum, e a graciosidade com que planava fazia parecer que não tinha peso.
A lua emitia uma luz etérea, deixando seus contornos quase indetectáveis, ainda assim, era fácil ver seus olhos, sem pupilas, em tom prateado, na mesma cor que seus curtos cabelos. Sua pele era muito branca e lisa, e seu manto negro balançava etéreo, disforme, vez ou outra soltando um pedaço, que se evanescia no ar.
Observava tranquilo uma pequena vila a seus pés. Era pequena e frágil, nada mais que um amontoado de casas. Os humanos ali viviam despreocupados. Pelo adiantado da hora, muitos já estavam deitados, prontos para dormir. Ele suspirou, quando uma pequena mariposa negra surgiu e começou a voar a sua volta. Muitas outras já estavam neste movimento.
Sem alterar por um instante sua expressão, a criança estendeu sua mão à frente e virou o corpo. Uma gigantesca gadanha parecia surgir das sombras a sua volta, para pousar em suas mãos. Era um tanto desproporcional, em vistas do pequeno tamanho da criança. Estava claro que aquele ser não era nem um pouco normal.
O corte da imensa arma foi travado, com imenso estrondo, por um imenso escudo de bronze. O sorriso do homem que o portava se dirigia à espada que, em sua outra mão, mantinha com a ponta próxima ao pescoço da criança. Ainda assim, aquele pequeno ser de olhos prateados não alterava sua face inexpressiva.
– Aeon.
– Genim! Que surpresa te encontrar em um lugar assim. O que faz a Morte aqui?
– A Morte tem assuntos em qualquer lugar onde exista vida, até onde eu me lembre. Mas o que faz a Guerra em um lugar tão ermo? – O recém chegado aumentou seu sorriso, um sorriso que paralizaria o mais corajoso dos homens. Ainda assim, a pequena Morte não se alterava.
– Só apareces para grandes eventos. Então, pensei que algo pudesse me divertir aqui.
Pela primeira vez Genim deixou transparecer uma emoção. Era o desgosto pelo espírito sanguinário de Aeon.
– Trago más notícias a um único homem. Um Shaman. Não é alguém que lhe possa interessar, nem ao menos teremos um massacre por aqui. Vá embora, e me deixe trabalhar em paz.
– Em sendo assim, não tenho nada o que fazer. – O homem encolheu os ombros, e tirou o peso do escudo e espada. Como que em um passe de mágica ele foi parar a metros de distância do pequeno – Não te esqueças de me chamar, se algo interessante for acontecer.
O pequeno se virou contrariado, e saltou na escuridão.

Um começo

Boa Noite a todos!
Tomo a liberdade de escolher o conto pelo qual começo essas publicações: A Herança de um Shaman. Essa história é relatada por Andrey, um jovem Shaman que tomará um papel importante na história principal, e nos conta o seu diálogo com a Morte, quando esta veio buscar a alma de seu pai. Divirtam-se!