terça-feira, 23 de março de 2010

Herança de um Shaman V

Eu não consegui mover um único músculo. Aquela cena era descabida, totalmente improvável. Quando penso naquele dia, ainda me lembro do absurdo que era uma criança balançando aquela imensa espada contra um homem. Outro absurdo era que eu, tão forte aquela época, fui totalmente incapaz de defender meu pai. Até hoje me perguntado se foi por covardia ou amor que não entrei na frente daquela lâmina.
Uma pequena mariposa de cor arroxeada começou a fazer rodopios em volta do Espírito. Percebi que era a única diferente das outras, só podia ser meu pai, que portava a benção do Senhor do Infra-Mundo. Não consegui chorar, mesmo diante do evidente fato de que ele tinha morrido. Ao contrário de mim, Genim parecia não ter problemas em demonstrar seus sentimentos, ao permitir que uma pequena lágrima de sangue descesse por seu rosto.
– Pegue essa espada. – Ele me entregou a arma que estava ao lado de meu pai. – Quando estiveres pronto para começar tua jornada, e abandonar esta casa, estarei esperando por ti na floresta, ao sul da vila.
– E minha mãe e minha irmã, como elas ficam?
– A vila as irá proteger e cuidar delas, já que elas não têm quem as olhe. No que depender dos espíritos, elas também não passarão necessidade, já que as abandonas pelo nosso bem, e nosso desígnio. Por favor, leve o tempo que quiseres em tua despedida, mas vá a floresta antes do nascer do sol. Não me furtarei a uma única pergunta, então.
Ele fez um gesto com a mão, como quem dá passagem a alguém. As borboletas seguiram em direção a janela. Reparei que a borboleta violeta ia no meio das demais, que simplesmente lhe faziam um cortejo. Esperei elas desaparecerem para olhar de novo para o espírito.
– Vá, Senhor. Em breve estarei reunido contigo. Obrigado.
Genim sorriu, e desapareceu, como uma sombra que se desfaz. As cortinas encerram o movimento que tinha começado há tanto tempo. Era hora de agir. Sem pensar, dirigi-me a sala e olhei para a minha mãe.
– Teu marido, meu pai, habita agora as mansões do infra-mundo. Eu, contudo, não poderei te consolar, minha mãe. Devo seguir com a missão de meu pai, por mais terrível que seja minha jornada. Adeus.
Sem dizer mais palavra, e sem esperar resposta, corri para a porta, ganhando a noite. Aquela foi a última vez que as vi com vida. Ainda assim, agradeço a Genim, que cumpriu suas promessas, pois a vida delas, sem minha presença, foi a melhor que poderia ser. Tinha certeza de que as veria na mansão dos mortos, quando nossa hora de partir chegasse.
Corri o mais rápido que pude com a espada de meu pai. A minha espada. Terminei de correr a pequena vila de casas de pau a pique em pouquíssimo tempo, e a vi ficar cada vez mais para trás. Um sentimento estranho de pesar e liberdade se misturavam em minha alma.
Fiz uma pequena oração silenciosa. Precisaria tirar forças de algum lugar. Engraçado como podemos nos enganar. Naquela época acreditava que estaria só dali para frente.
Eu não demorei a chegar a floresta designada para encontrar o Espírito. Também não tomou muito tempo para encontrá-lo. Ele parecia ter esquecido completamente a discrição, já que tinha feito uma grande fogueira, que ardia vigorosamente. Usava um pequeno tronco como banco.
Aproximei-me com cautela, mas ele percebeu rapidamente minha presença, e gritou para que eu me juntasse a ele. Ele ainda parecia incapaz de conter seus sentimentos. No final das contas, pensei, ele não passava de uma criança, como outra qualquer.
– Tome. – Ele me deu uma pequena taça de estanho. – Brindemos ao teu pai, o maior Shaman de todos os tempos.
Pela primeira vez eu consegui chorar minha perda.

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